FILHOS DO TEJO (primeira entrevista)
JAIME FERNANDES GRILO, nasceu em 08/01/1933, no
Patacão de Baixo, concelho de Alpiarça, tendo vindo residir para a Chamusca em
1940, com 8 anos de idade.
Descendente de
pescadores da Praia da Vieira, que imigraram da realidade salgada do mar para o
imaginado leito doce do Tejo, para tentarem escamar o corpo pobre, incerto e
fugidio do futuro. Aqui se acolheu em menino no berço do barco, embalado pela
correnteza do rio e escutando o som das redes cortando o vento no lance para as
águas profundas, trazendo à tona o coração dos peixes, para encher de vida e
alegria o peito dos homens.
Viveu em
palhotas e em barracas na borda d’água, sempre com os olhos mergulhados no rio
e a alma cheia do Tejo.
Com apenas 8
anos de idade, sentindo correr no sangue o Tejo de várias gerações, tornou-se
pescador. Pescava de dia e de noite com o pai, com a vontade firme de quem não
brinca com a vida séria e responsável.
Foi à escola
de fugida, porque o espírito das letras era mais leve que o peso da fome. Mas
aprendeu com o Tejo todas as lições necessárias para se tornar um Homem digno.
Casou-se.
Voltou a viver num barco e à proa do mesmo e com a mulher à ré lançaram as redes
à vida.
Construiu a
sua barraca com os proventos da pesca, mas quando o rio se tornou escasso de
peixe procurou a terra e tornou-se igualmente agricultor. Conjugando as
profissões de seareiro e pescador, conseguiu comprar a sua casa de tijolo e
cimento mas com uma janela virada para o Tejo, para nele encher o olhar.
Protegeu e
afastou os seus filhos do Tejo e pô-los a estudar, na perspectiva de lhes dar
uma vida melhor, numa altura em que ele próprio, aos 33 anos, estudava e
terminava a 4.ª classe.
Apesar da agricultura
se ter tornado o seu principal sustento nunca abandonou a pesca, abraçando as
duas actividades e mantendo a arte de construir barcos de madeira.
Aos 80 anos
continua a pescar, apesar dos seus problemas de saúde, porque não consegue
resistir ao apelo do Tejo e vai mantendo a esperança que um neto e dois
sobrinhos hão-de continuar a labutar e a manter uma história de família com
mais de 100 anos.
Este é, pois,
um dos últimos filhos do Tejo no concelho da Chamusca. O sangue ainda vivo
daqueles a quem deram o nome de avieiros.
Um exemplo de
humildade, trabalho, dedicação, cultura e envolvimento do Tejo, no desenvolvimento
da Chamusca e do Ribatejo.
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Como é que se deu esta ligação dos avieiros e da
sua família com o Tejo?
Durante o
período de maior intempérie no mar e de menos peixe, devido à necessidade de
prover à sua subsistência, os pescadores da Praia da Vieira criaram o hábito de
se deslocar para o Ribatejo e, durante os meses de Janeiro a Junho, fazerem a campanha
da pesca ao sável no rio Tejo.
Os meus avós
paternos e maternos e os meus pais faziam parte de um desses grupos e começaram
a ter tanto gosto por esta região, que acabaram por aqui se fixar nos anos 20
do século XX, na zona do Patacão de Baixo, em Alpiarça, trazendo os seus
conhecimentos e tradições a que hoje se chama a cultura Avieira.
Como era a vida destas famílias?
A sua vida era praticamente feita no rio, trabalhando na
pesca e vivendo dentro dos barcos que eram as suas casas e onde os casais chegaram
a viver durante anos com os seus filhos, como aconteceu no caso da nossa
família.
Os barcos, que
se chamavam bateiras, tinham 6 a 7 metros de comprido e cerca de 1,10 metros de
largura e eram compostos por 3 divisões: à proa situava-se o quarto dos pais e
dos filhos, nas emparadeiras, a meio do barco, ficava a cozinha; a parte da ré
era a oficina dos pescadores, onde se guardavam e preparavam as redes e os
apetrechos da pesca.
Só algum tempo
depois de nos fixarmos no Tejo começámos também a viver em terra, no interior
de palhotas construídas com varolas de madeira e fechadas com telhados e
paredes feitas de palha.
Alguns anos
mais tarde, devido a uma melhoria de vida, começaram a construir-se barracas,
que assentavam sobre estacas altas, que se chamavam palafitas, para que durante
as enchentes do rio a água não entrasse nas casas.
Toda esta realidade de raízes tão profundas no
Tejo e na sua família, só podiam fazer de si um pescador. Com que idade começou
a dedicar-se à pesca?
Primeiro gostaria de dizer que foi na Chamusca
que iniciei a minha actividade de pescador.
Em Dezembro de
1940 os meus pais e os seus 5 filhos vieram para esta terra e fixaram-se no
Porto do Carvão. Como aquela área sempre foi património da Câmara Municipal da
Chamusca, através do pagamento de uma renda de 5 escudos por mês pelo aluguer
do terreno, o meu pai foi o primeiro a construir ali uma barraca para albergar
toda a família, que viria ainda a tornar-se mais numerosa com o nascimento de outros dois filhos,
E foi ali,
daquele Porto, que aos 8 anos comecei a fazer-me ao Tejo e a ser companheiro de
pesca do meu pai. Pescávamos noite e dia, sobretudo durante a noite, e só
dormíamos por breves momentos na pausa da faina.
Tínhamos duas
bateiras, uma maior e outra mais pequena, e andávamos na pesca durante todo o ano,
pescando barbos, sável, saboga, fataças, bogas, carpas e lampreia.
Quando é que tinha tempo para ir à escola?
Não tinha
tempo. Só fui à escola quando tinha 12 anos de idade e isso apenas aconteceu
durante duas semanas, porque veio uma cheia e o meu pai foi pedir ao professor
que deixasse que eu e o meu irmão Celestino faltássemos por uns dias, com a
promessa que depois voltaríamos, pois precisava que fossemos ajudá-lo a
trabalhar com a varina, que era uma rede de arrasto constituída por duas redes
e um saco ao meio.
É claro que já
não voltei à escola e só viria a ter novo contacto com as letras quando tinha
16 anos. Durante 6 meses andei a aprender no Manuel Barroso, que era um
explicador que tinha um género de escola e onde aprendi a ler e a escrever
algumas coisas, que me serviram para depois, quando andei na tropa, com mais
algum tempo de estudos conseguir fazer a 3.ª classe.
Os anos
passaram e só muito mais tarde, com 33 anos, por ter necessidade de tirar a
carta de condução, para trabalhar na agricultura, retomei novamente a
aprendizagem no mestre Manuel Barroso e me propus a exame, tirando a 4.ª classe
no dia 17/04/1966. Nesse mesmo ano, em 20/07/1966, tirei a carta de condução.
Mas o menino que não ia à
escola aprendia muito com a realidade do Tejo. Como era a vida no rio durante a
sua juventude?
Na altura
existiam na Vila da Chamusca três Portos: Porto das Mulheres, do Carvão e da
Cortiça. No Pinheiro Grande também havia um porto. Para além dali estarem atracados e partirem para a faina os barcos dos pescadores, fazia-se um grande movimento de
cargas e descargas doutras embarcações que transportavam carvão, lenha, cortiça,
cal, vinho, sal e trigo. Tudo isto acontecia porque o Tejo era perfeitamente
navegável e por isso era um meio muito utilizado na circulação de mercadorias.
Quanto à
pesca, para além dos meus irmãos e dos meus pais, existiam outros avieiros no
Porto das Mulheres. O Francisco Fernandes, o António Fernandes, o David
Fernandes, o Joaquim da Silva e também a família Sequeira, o casal e os filhos
Joaquim e José. Para além de muitas outras famílias a pescar ao longo do rio
até Vila Franca de Xira.
Naquele tempo
havia muito peixe no Tejo. Lembro-me, quando tinha 17 anos de idade, de termos
feito um lance com a varina e pescado 225 sáveis. Era normal naquela altura em
qualquer lance de rede trazer-se entre 50 a 80 peixes.
O peixe era
tanto na zona de Salvaterra de Magos, onde pescávamos com frequência, que os
golfinhos subiam o mar até ali e recordo com grande alegria a beleza dos seus
saltos perseguindo os cardumes.
Entretanto tornou-se homem
e teve que começar a pensar na sua independência e em criar a sua própria
família. De que forma se desenrolou essa nova fase da sua vida?
Casei-me, com
a minha prima Maria Lameira, também ela
avieira, em 16/09/1956. Eu tinha 24 anos e ela 22.
Casar
significou ter que sair de casa dos nossos pais e começarmos a lutar pela nossa
própria vida.
Como a minha
mulher é de Vale de Figueira ali casámos. A nossa lua-de-mel fez-se subindo o
Tejo até à Chamusca, no barco que o meu pai me deu e que passou a ser a nossa
casa e o nosso ganha-pão. Essa pequena embarcação foi a nossa residência durante 17
meses e ali trabalhámos com as redes que nós próprios construímos. Quando
chovia ou fazia muito frio cobríamos o barco com um toldo para nos protegermos.
Naquele tempo
só os mais velhos é que tinham casas, os mais novos viviam dentro dos barcos.
Passados
aqueles 17 meses a viver no barco, já com algumas posses consegui construir uma
barraca no Porto do Carvão onde viria a nascer a minha filha Ermelinda e onde
já havia uma casa da minha irmã Maria Vicência e outra do meu pai.
Isto só foi
possível com muito trabalho na pesca por parte dos dois. A minha mulher sempre pescou
comigo. Ela à proa e eu à ré. E também com mais esforço e trabalho em terra
para nos deslocarmos e tentar vender o peixe nos mercados da Chamusca, de Alpiarça,
do Entroncamento e em Salvaterra de Magos quando íamos pescar para aquela zona.
Apesar dessa dedicação ao rio e empenho na pesca,
foi em terra e na agricultura que a vossa vida progrediu. Como é que se
transformou num agricultor?
Aos 16 ou 17
anos já tinha ceifado trigo e trabalhado com uma debulhadora. Como a
pesca estava muito ruim, pois começou a faltar o sável, aos 28 anos arrendei
umas terras na Quinta da Lagoalva e comecei a fazer searas de campanha de
tomate no Verão, vivendo durante o resto do ano da pesca.
A agricultura tornou-se muito importante
na minha vida, devido à facilidade de entrega do tomate nas fábricas da Compal
no Entroncamento e posteriormente em Almeirim quando a fábrica para ali se
mudou; na SIC, na Azinhaga; na Unital, nos Riachos e na Spalil, na Chamusca.
Nessa altura,
a meio dos anos 60, a pesca já era secundária, porque com a construção da
Barragem de Castelo de Bode o sável já não podia desovar devido à retenção das
águas que tornavam o leito baixo, ou das fortes descargas que arrastavam as
ovas e alteravam o seu habitat.
Se não fosse o
trabalho do campo não teria conseguido, em 1968, comprar o terreno e podido construir
a minha casa de tijolo e cimento. Aqui, a curta distância do rio, não só para
ficar perto do Porto do Carvão, como para poder ter o Tejo sempre no olhar.
Foi por sentir essa falta de futuro na pesca que
os seus filhos nunca seguiram a vida de pescadores?
Pelo quanto é
difícil a vida de pescador, a escassez do peixe e o pouco dinheiro que se fazia,
nunca quis que os meus filhos se entregassem à pesca e ao Tejo e meti-os a estudar.
A minha filha nem sequer sabe remar e o Jorge,
o meu filho, só vai ao rio de vez em quando.
Com a mulher e o filho Jorge, no dia da entrevista.
Para além da pesca e da
agricultura também foi construtor de barcos!?
Sim, construí vários barcos. Alguns foram feitos para o meu uso e outros
foram-me encomendados por particulares. Nunca aprendi carpintaria ou trabalhei
como carpinteiro, mas sei construir barcos em madeira. Construí-os praticamente
só usando como ferramentas uma enxó, uma plaina, uma serra, martelo e pregos.
A formação foi passada de pais para filhos. Desde menino que ajudava o meu pai a
construir barcos e foi vendo e ajudando que aprendi também a fazê-los.
Fotos durante o Processo de construção de um barco.
Trabalhando com o sobrinho Joaquim José Grilo Fernandes
Com uma idade já tão avançada, porque é que ainda continua a
pescar?
Continuo a pescar por necessidade, mas também para ajudar
outras pessoas da família, como o meu neto Rui que pescou este ano comigo, de Fevereiro
a Abril, na pesca da lampreia. É este peixe que ainda vai dando algum dinheiro,
porque tenho um cliente que me compra tudo o que pesco.
Tirando este período da
lampreia, já só vou à pesca praticamente uma vez por mês, porque como já disse
há muita escassez de peixe. Já não se encontra praticamente sável no Tejo e a
fataça, as bogas as carpas e os barbos também são poucos.
Um dia de Pesca com a sua mulher
No seu entender a que se deve esta situação de escassez de
peixe?
Em meu
entender o peixe tem desaparecido devido ao lúcio, um peixe que foi introduzido
no Tejo e que se alimenta das outras espécies, mas sobretudo devido aos corvos
marinhos que se tornaram uma praga, mas são uma espécie protegida, e às descargas
que trazem os poluentes matando alguns peixes e afastando outros.
O que é que sente por ser provavelmente o último pescador na
história da sua família?
Tenho pena que
a tradição da pesca possa acabar na minha família, mas também acredito e estou
confiante que isso possa não vir a suceder porque estou a tentar puxar para o
Tejo o meu neto Rui e também dois sobrinhos, o Joaquim José e o Fernando Chora,
para que ele continuem este modo de vida.
Até quando é que vai continuar a pescar?
Vou pescar até
poder, porque nasci no Tejo e foi nele que me fiz homem e comecei a ganhar o
meu sustento. O rio faz parte da minha vida e não sou capaz de passar os meus
dias só a olhar para ele, sem me meter à água.
Que mensagem final, relativamente ao Tejo, gostava
de deixar?
Gostava de
chamar a atenção das autoridades responsáveis pelo Tejo para cativarem funcionários
descendentes de pescadores, devido à sua experiência, para fiscalizarem as
pessoas que andam a praticar a pesca ilegal
E que, também,
se esforçassem por tornar o Tejo mais navegável.
Dedico este trabalho à memória de todos os
Avieiros e em especial a Américo dos Santos "Passarito", meu avô, um
pescador encantado pela pesca da enguia e um peixeiro humilde e dedicado.
Agradecimentos:
A Armando Malaquias pelas fotografias, a da abertura desta página e de um dia de pesca e a
Lurdes Couto pelas fotos do processo de construção de um barco.
Comentários no facebook e no blogue:
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Magnifico relato!
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Gostei muito do que li e ouvi, que me fez recordar momentos da minha infância/juventude. Parabéns por mais este trabalho em favor da memória colectiva!
Acabo de "publicitar" a entrevista no meu blogue:
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Carlos, trabalhas-te o texto de modo muito expressivo, apreciei muito, agradeço-te todo o teu trabalho. Desejo que continues a fazer da tua arte da escrita uma valorização de outras pessoas e de interesses comuns que todos temos
ResponderEliminarUma história real, linda para sempre recordar
graças a alguém com grande coração
que valor e vida lhe soube dar
Obrigado! das minhas origens só me devo orgulhar.
Parabéns! este registo é digno de se divulgar.
Um grande agradecimento a todos. Fico feliz, sobretudo, pelo reconhecimento que têm dedicado às pessoas e Instituições apresentadas neste espaço, que se pretende seja de muita Amizade, Solidariedade e Humanidade. Tenho o privilégio e a honra de que esta gente boa me vá abrindo a porta e o coração, confiando-me o valoroso exemplo da sua vida. Sinto-me gratificado com as amizades feitas, com o carinho que me têm manifestado e com o muito que tenho aprendido. O meu trabalho é apenas um reflexo da qualidade dessas pessoas. Abraço Forte.
ResponderEliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarSão exemplos destes, que não devem deixar morrer. Grande lição de vida.
ResponderEliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
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