MARIA NAZARÉ
GAMEIRO ALVES DOS SANTOS, nasceu na
freguesia da Chamusca em 06/07/1940.
Foi uma criança e uma jovem dedicada e envolvida
socialmente.
Formou um Grupo Coral, um Rancho Folclórico e deu
aulas de música, sempre com o objectivo de ensinar e mobilizar pessoas para a
intervenção cultural e social.
Sentiu-se na necessidade de deixar de estudar para
cuidar da mãe que estava muito doente. Situação que duraria 10 anos. Mas após o
falecimento daquela, com uma força de vontade e motivação extraordinárias, voltaria novamente a prosseguir os estudos e a desenvolver a vocação de ser
enfermeira.
Frequentou a Escola Superior de Enfermagem de Santarém, cujo curso pagou com o seu trabalho na agricultura e fazendo malhas, e aos 42 anos viria finalmente a formar-se. No Centro de Saúde da
Chamusca, onde foi colocada, para além de enfermeira, foi membro da Direcção e
uma Amiga a tempo inteiro, que percorria todo o Concelho a prestar cuidados de
saúde a quem deles carecia, sem receber dinheiro por qualquer hora
extraordinária ou subsídios para as deslocações que fazia usando o seu próprio
carro.
Alguns anos depois, aos 49 anos, percebeu que a sua dádiva podia
ainda ser maior e dedicou-se à AMI (Assistência Médica Internacional). Fez 19
missões no estrangeiro. Esteve na Guiné, em Cabo Verde, em S. Tomé, em Angola,
em Timor, no Ruanda e na Macedónia, no Kosovo.
Correu perigo de vida, encarou os olhos da morte, mas
andou sempre pelo meio da violência, do caos, do desamparo e do sofrimento com
o coração sangrando de humildade, de humanidade e de Amor.
Em África sofreu paludismo, febres várias e uma doença
que a obrigou à reforma. Apesar do seu estado de saúde debilitado, em 2003,
ainda foi uma das pessoas mais empenhadas no auxílio às populações atingidas
pelo fogo que queimou casas e consumiu vidas no concelho da Chamusca.
Obteve tributos e distinções, o maior de todos o
Prémio Mulher Activa 2002 no valor de 35.000€. Dinheiro que, ainda no próprio
estúdio onde se realizou o programa de televisão e no qual foi agraciada, num
gesto magnífico de altruísmo, de humanidade e de generosidade doou para os
órfãos de Angola. Pois, como a mesma refere: “o dinheiro não era meu, pertencia
a todos os pobres com quem trabalhei. Sem eles o prémio nunca me seria
atribuído.”
No momento actual continua a intervir socialmente,
ajudando algumas pessoas mais carenciadas da Chamusca, porque a sua vida só tem
significado “como uma missão de ajuda ao próximo.”
Num mundo sem valores, onde o egoísmo, a ganância e o
materialismo destroem a humanidade, são exemplos como o desta MULHER, que nos fazem reflectir sobre o
porquê da nossa própria existência e se somos verdadeiramente humanos?
Nazaré
Santos, com a sua humildade,
dedicação, vocação profissional e riqueza sentimental, desbravou caminhos,
estabeleceu pontes de progresso e de Amizade, ajudou a sarar feridas, a mitigar
a dor, a fazer nascer as sementes da esperança. Com ela, o mundo órfão de AMOR, encontrou uma MÃE fervorosa de paixão, que deu a sua
vida para salvar a dos seus filhos.
Sinto por ela uma enorme admiração e em meu nome e no
de tantos outras pessoas, apenas posso agradecer-lhe por ter tornado o nosso Mundo
melhor.
OBRIGADO,
PELA DÁDIVA DA SUA VIDA!
&&&&&&
Fazer o bem e dedicar-se aos outros,
para si parece ser simples, ser um dom. Já sentia este apelo humanitário na
Infância?
Sempre senti este apelo, porque sem viver para os
outros a vida não faz sentido. Também fui educada para isso. A minha mãe e o
meu pai ensinaram-me sempre a ter respeito e a tratar bem aqueles que mais
necessitavam.
Esse seu espírito cedo se conjugou
também com a sua disponibilidade para se envolver em actividades de intervenção
social e cultural. De que forma é que isso sucedeu?
Apesar de ter desenvolvido alguma actividade teatral
foi, sobretudo, no campo da música que mais me envolvi. Aos 13 anos comecei a cantar
no coro da igreja, onde alguns anos depois passei também a tocar órgão, devido
ao facto de ir tendo aulas de música regularmente e ter cada vez mais
conhecimentos musicais.
Ainda na Igreja da Chamusca tive oportunidade de
formar o Grupo Coral da Imaculada Conceição, que se apresentou por várias
localidades do Distrito, com o principal objectivo de angariar fundos para a
Igreja e para outras Instituições de cariz social.
Entretanto e porque eu queria era mobilizar as pessoas
e a sociedade acabei por me envolver na criação do Rancho Folclórico de Santa
Maria do Pinheiro Grande. O curioso neste Rancho foi o facto de no seu início
ser constituído apenas por mulheres e para formarmos pares algumas terem de
trajar roupas masculinas. Só depois os homens foram chegando e se deram vários
casamentos entre elementos do Rancho e que até hoje, felizmente, ainda
perduram.
Rancho Folclórico de Santa Maria do Pinheiro Grande - no primeiro plano o Padre Diogo, Julião Marques, Vítor Moedas, Nazaré Santos e Joaquim Salvador.
Chegou a pensar na música como um
eventual futuro profissional?
Nunca! Estudei música durante 13 anos, na Escola em
Torres Novas, com a senhora Celeste Sentieiro e foi por gosto que durante
alguns anos até dei aulas de música na minha casa. Cheguei a ter mais de 20
alunos. Quem podia ajudava com algum valor simbólico para as despesas que
eventualmente tínhamos, porque o importante era ter um grupo de jovens, rapazes
e raparigas a conviver, a criar amizade, a empregar bem o seu tempo e a
aprender.
Um desses alunos ainda está ligado à música, com
sucesso, o João Chora, que aliás fez também parte do Grupo Coral da Imaculada
Conceição.
Cheguei ainda a ser convidada para dar aulas no Ciclo Preparatório da Chamusca, mas não aceitei, porque o que sempre senti foi uma grande vontade
de seguir enfermagem.
Festa de Homenagem a Manuel da Silva Santos, na Escola Preparatória da Chamusca. O Homenageado e Maria Xavier Cachapuz cantando, acompanhados por Vítor Moedas no acordeão, Nazaré Santos ao piano e mestre António Arrenega no bandolim.
O acompanhamento e dedicação a
familiares doentes, sobretudo a sua mãe, impediu-a de continuar a estudar, mas
foi este espírito de dádiva que reforçou a sua vontade e vocação de ser enfermeira?
Essas situações, as atenções e os cuidados que
requeriam, apenas reforçaram mais a minha vontade de ser enfermeira. Eu já me
tinha matriculado e frequentado o curso de auxiliar de enfermagem, na Escola
Superior de Enfermagem de Santarém, quando tive que desistir devido ao facto da
minha mãe ter ficado muito doente e ser necessária a minha presença para cuidar
dela.
Mas isso não significou que tivesse ficado parada sem
desenvolver as minhas capacidades. Como a minha casa ficava ao lado do Hospital
da Chamusca, hoje Centro de Saúde, e como a minha mãe estava doente e podia
acordar se me viessem chamar, quando precisavam de mim no Hospital tínhamos
combinado uma senha. Eu espreitava e se a persiana estivesse subida era porque
precisavam da minha ajuda. Cheguei a ir ali ajudar em partos e outras urgências
gratuitamente. Naquela altura ainda só tinha o curso de primeiros socorros.
Após o falecimento da sua mãe voltou aos
estudos, mas as exigências já eram outras?
10 anos depois, após o falecimento da minha mãe,
voltei novamente a poder estudar. Nessa altura já havia mais exigências em
termos de habilitações literárias e assim tive que tirar o 12.º ano e só depois
foi possível inscrever-me novamente na Escola Superior de Enfermagem e
frequentar o curso de Enfermagem Geral. Paguei o curso com o meu trabalho. Nas
minhas viagens de autocarro para a Escola e nos percursos posteriores durante o
meu estágio nos Hospitais de Santarém, Júlio de Matos e Vila Franca de Xira, ia
ocupando o tempo fazendo malha que vendia para particulares e para uma loja em
Santarém. Para além disso fazia o trabalho nas terras que possuía no campo e de
onde tirava o sustento. Roçando, gadanhando, mondando, arreando salgueiros, bem
como fazendo praticamente todo o tipo de serviço agrícola. Ainda ordenhava as
vacas e fazia manteiga e queijo. Aprendi a fazer tudo isto com o meu pai
e quando este faleceu, tinha eu 18 anos, quem continuou a labuta nos campos e
manteve as terras cultivadas fui eu.
Em 1982, aos 42 anos, viria finalmente a
formar-se. Qual foi o seu grande sentimento nessa altura e o que é que o curso lhe
veio proporcionar?
Senti que a partir dali podia, de facto, ajudar mais
as pessoas e que eu própria podia realizar-me mais como pessoa. Significou
também a possibilidade de ficar a exercer a minha profissão na Chamusca, no
Centro de Saúde local, onde cheguei a fazer parte da Direcção. Acabou por ser
também um tempo de muita entrega e
disponibilidade, pois quando era necessário deslocava-me a qualquer
hora, no meu próprio carro, pelas freguesias do Concelho da Chamusca para ir
prestar cuidados de saúde. Fazia-o de uma forma voluntária, nunca recebi
qualquer dinheiro de horas extraordinárias ou para ajuda de combustível.
Recebendo a touca de enfermeira.
Recebendo o distintivo do curso por parte da enfermeira chefe.
Apesar deste seu grande envolvimento na
Saúde da Chamusca a AMI (Assistência
Médica Internacional) acaba por surgir no seu caminho e cativá-la. De que forma
é que tal sucedeu?
A enfermeira Eulália, uma colega de Vila Nova de
Ourém, que trabalhava no Centro de Saúde da Chamusca inscreveu-se na AMI e
falou comigo sobre o trabalho daquela Organização. Como por aqui as coisas
estavam mais ou menos orientadas em termos de saúde e em África havia muitas
carências, acabei também por inscrever-me na AMI.
Em 1989 pede uma licença sem vencimento
e começa a sua senda de auxílio humanitário pelo mundo. Qual foi a sua primeira
missão e que memórias guarda da mesma?
A minha primeira missão foi em Madina Bué, na Guiné,
onde formámos um hospital em tabancas (cabanas). Estive ali durante 6 meses. As
pessoas vinham a pé do Senegal e da Guiné Conakri e atravessavam a fronteira
para a Guiné para serem tratadas e socorridas, pois sabiam que ali estavam
médicos e enfermeiros portugueses a trabalhar. A nossa presença foi muito
importante para estabelecer uma rede de saúde naquele país.
Foi também nessa primeira missão que me apercebi da
naturalidade com que as pessoas, em África,
aceitavam a morte. Um médico do Hospital D. Estefânia que também fazia
parte da missão e a quem nunca tinha morrido nenhuma criança nas suas mãos, não
sabia como dar a notícia a uma mãe da morte do seu filho. Eu estava igualmente constrangida, porque isso também nunca sucedera na minha vida. Quando
conseguimos ganhar coragem para lho dizer, ficámos ambos surpreendidos com a
resposta serena da mãe: “Deus quer.”
Jovem a quem fez o parto, pouco antes de cumprir a sua missão naquele país, e que em sua homenagem deu o nome de Nazaré à filha.
A música como sentimento e memória das missões
Depois seguiu-se Cabo Verde. Qual foi o
seu papel no desenvolvimento das infraestruturas de Saúde daquele País?
Depois de vir da Guiné voltei a meu lugar no Centro de
Saúde na Chamusca, mas pouco depois surgiu-me o convite para ir para Cabo
Verde, onde fiquei durante 3 anos. Ali a AMI implantou a Escola de Enfermagem Manuel Olímpio, na Ilha de Santiago, mas corríamos todas as ilhas onde tínhamos vários
estudantes de enfermagem a estagiar. Fui eu quem lidou directamente com o
Ministro da Saúde no processo de organização curricular e implantação do curso
e a responsável pelo mesmo.
A meio do curso ainda sofri um percalço, quando me
cortaram a licença sem vencimento e fui obrigada a deslocar-me a Portugal para
resolver essa situação burocrática. Felizmente que consegui voltar e continuar
com o meu trabalho num curso que formou 22 enfermeiros.
Para além desse trabalho, ainda empreguei algum do meu
tempo a dar aulas de música.
Festa com os alunos do curso de enfermagem.
Dançando com um aluno do curso de enfermagem.
Escola de Enfermagem Manuel Olímpio - Cerimónia de formatura do curso de enfermagem.
Com o director e os alunos do curso de enfermagem.
Depois da entrega da touca a enfermeira recém-formada.
Com um enfermeiro e uma enfermeira recém-formada.
Precedida pelo Ministro da Saúde, pelo Secretário de Estado e pelo director do curso.
Dando aulas de música
Também esteve em S. Tomé. Qual o
trabalho que desenvolveu ali?
A AMI já tinha estado em S. Tomé, onde montou um
hospital. Mas como ali havia uma grande desorganização em termos de saúde, fui
chamada para colaborar na sua reorganização. Andava igualmente pelas roças a
dar educação para a saúde e a formar professores. Ali eu própria cheguei a ser
professora dando aulas de Francês.
Depois ainda voltei mais 3 vezes àquele país para
fazer formações.
No Ilhéu das Rolas.
Caiando
As suas missões começaram a
desenrolar-se em países envolvidos em guerra, como foi o caso de Angola. No
meio da violência, do perigo, dos imensos feridos e desalojados e da morte,
como é que era possível trabalhar?
Fiz 14 missões em Angola. Comecei por trabalhar na
leprosaria da Funda, Também estive em Caxito, Nadetalando, Lobito e depois
dediquei-me aos órfãos. Aos meninos de Huambo e do Cuando. Era uma país em
guerra, com muitos ataques e constantes bombardeamentos e não posso esquecer um episódio que me aconteceu, logo no meu primeiro dia em Huambo, e que
me pôs de sobreaviso para aquela realidade. As casas eram eram todas forradas
com platex, cartões e papelões, não só por estarem destruídas, como para não
deixarem fugir qualquer rasto de luz que fizesse de nós alvos na noite.
Lembro-me que pensei em escrever uma carta para o meu irmão e acendi uma vela
para o fazer e quase imediatamente senti um enorme estrondo a rebentar por
detrás de mim. Qualquer sombra de luz era um perigo.
No Cuando fazia-se a recolha dos órfãos. Tínhamos
berçário até aos 18 anos. Tratava-se de uma missão católica que tinha o nome de
“Santíssimo Salvador”, na qual as irmãs tratavam apenas dos órfãos e para onde a
AMI foi chamada para lhes prestar ajuda.
Mas era debaixo de muita dor que exercíamos o nosso
serviço. Um dos momentos mais dolorosos que ali vivi deu-se quando encontrámos
duas crianças agarradas aos corpos dos seus pais, que estavam mortos. Esta
visão e drama ainda se tornaram mais angustiantes quando verificámos que o
trauma dos meninos era tão profundo que tinham inclusive perdido a fala.
Apesar de tudo fico feliz porque tive sempre coragem
para continuar a trabalhar e, com a graça de Deus, ajudei a salvar a vida a muitas
crianças.
No quarto.
22 horas - Nadatalando - Assistindo uma criança à luz do foco.
Pesagem de uma criança.
Algumas fotografias da missão em Huambo, Cuando, Fevereiro a Maio de 1995
Que mais recordações fortes ainda guarda
dessas missões em Angola?
A de corrermos também muito perigo. Lembro-me que
houve um surto de raiva que afectou 32 crianças e por isso tivemos que abater
os cães que transmitiam o vírus. Pouco depois apareceu-nos um militar a ameaçar-nos
que “O Homem da Tabanca”, aquele que mandava naquela área, tinha mandado matar
as pessoas que foram responsáveis pela morte dos cães. Recordo-me que o médico
da missão entrou em pânico porque tínhamos sido nós a ordenar que se matassem
os animais, mas a irmã Marcelina, natural de Angola, foi muito corajosa e pediu
para falar com o chefe militar. Não sabemos que argumentos usou, mas o facto é
que nos pouparam a vida.
Mas
a violência e a possibilidade de morte faziam parte do dia-a-dia. Uma vez no
Caxito andei cerca de 6 quilómetros com o cano de uma metralhadora encostada à nuca. A arma podia ter-se disparado a qualquer balanço ou salto mais acentuado do jipe onde nos
deslocávamos, ou por simples vontade de quem a empunhava, mas felizmente no
final só me ficou uma enorme nódoa negra no pescoço e na nuca.
Lobito - Sala de operações.
Lobito - fazendo o penso depois de extracção de bala.
Órfãos da guerra.
Esteve também no Ruanda, no centro dos
massacres étnicos. Como é que foi viver no meio do pânico, do caos e da chacina
e ajudar os desvalidos e as vítimas, sem meios e onde não se falava sequer uma
língua comum?
Quando ali chegámos, a Shiyra, as paredes interiores do
edifício que fora o hospital estavam todas cobertas de sangue das crianças que foram
mortas, como coelhos, atiradas contra as paredes. A primeira coisa a fazer foi ultrapassar
o choque e raspar essas paredes e pintá-las.
Ali não era preciso entendermo-nos através da
linguagem, porque quem sofria procurava auxílio e a dor é uma espécie de língua
comum.
Não
haviam meios. A nossa incubadora era um quadrado de algodão. Mas nunca nos
morreu nenhuma criança naquele serviço. Numa altura tive que fazer respiração
boca a boca e massagens cardíacas para reanimar uma criança, mas consegui
recuperá-la para a vida. Esta luta pela vida foi ainda mais gratificante para
mim, porque àquela mulher já tinham morrido o marido e os outros 4 filhos e eu
consegui manter vivo o familiar que lhe restava.
Vivia-se num caos. Havia recolher obrigatório nocturno.
Contudo uma noite, recebemos um pedido para auxiliar uma criança. Não
resistimos e saímos, sem medo, mas acabámos cercados por um grupo de homens de
armas engatilhadas e debaixo de ameaças fomos obrigados a regressar. Nunca mais saímos `noite. O perigo era demasiado.
Apesar de tanta dor, violência e ódio, conseguimos dar
carinho e conforto a muita gente.
Com duas crianças com cerca de 3 meses de idade.
Tentando ouvir notícias na rádio. Ocorria o segundo massacre étnico naquele país.
Dançando para tentar esquecer o terror.
Com a equipa da AMI e jornalistas da "TSF" e da Revista "Visão".
A AMI foi a primeira organização a
entrar em Timor quando os indonésios se começaram a retirar daquele país. Como
é que viveu a situação e como se desenvolveu ali a sua actividade?
Estive em Balide, região de Dili e também em Manatuto
onde a AMI fez uma enfermaria, sala de partos e farmácia. Para além disso íamos
buscar refugiados às fronteiras, além de prestarmos cuidados de saúde e
prevenção e criarmos postos de apoio aos deslocados.
Vivíamos segundo os costumes e hábitos culturais dos
timorenses. Vivíamos numa espécie de barracas e em casas improvisadas e
dormíamos no chão. O importante era irmos de encontro às pessoas e não lhes
impor as nossas diferenças culturais e sociais.
A falta de condições de vida eram tantas, que os
nossos banhos era tomados nos rios, sempre acima do lugar onde estavam os
hipopótamos para não sermos apanhados pelos seus excrementos e lavávamos a
nossa roupa nos charcos.
Dili, no interior de ex-hospital com o Dr. Fernando Nobre Presidente da AMI.
Em Dili com o Bispo de Dili e Prémio Nobel da Paz, D. Ximenes Belo.
Reunião da AMI na Casa de Dili.
No posto de saúde em Balide.
No guichet do atendimento do posto de saúde em Balide.
Manatuto - Maternidade calcinada.
Transportando refugiados que chegaram à fronteira.
Lavando-se no rio.
Ainda passou pela guerra do Kosovo, na
Macedónia. Que realidade foi encontrar ali?
Depois de tanta violência em África, ainda fui
encontrar um ambiente mais hostil e incontrolado no Kosovo, na Europa dita
civilizada. A Macedónia estava envolvida numa guerra brutal e a NATO viu-se
obrigada a intervir e a entrar ali. A população, ou pelo menos grande parte
dela, estava contra essa intervenção e entrada e assim um dia, quando fui ao
mercado, apesar de levar vestido o colete da AMI, houve um homem que me confundiu
como pertencendo à NATO e me apontou uma arma para me alvejar. Naquele momento
e perante a morte, para me salvar, mostrar que não tinha nada a ver com
aquela Organização Militar e que era portuguesa, pus-me a gritar; “Portugal”,
“Benfica”, “Sporting”, sem qualquer resultado. Quando o atirador se aprestava
para disparar, milagrosamente lembrei-me de gritar “Figo”. E foi o conhecimento
que esse homem por certo tinha desse grande jogador de futebol português que o
fez abrir um sorriso, baixar a arma e a partir dali criar simpatia por mim.
Nunca teve medo, ou sempre achou que a
sua vida só faz sentido se for uma dádiva para os outros?
Apesar de tudo nunca tive medo, a minha existência é
insignificante perante a vida que posso dar aos outros e a importância que eles
têm para mim.
Por isso apenas temia pela vida das populações e ali
no Kosovo também por aqueles que estavam mais próximos de mim. Temi pela vida
do Dr. Fernando Nobre, o Presidente e Fundador da AMI, que foi apanhado num
fogo cruzado enquanto dava uma entrevista à agência Lusa, também pela da ainda
jovem jornalista Alexandra Borges, que andava pela guerra como quem passeava
por um jardim ou pela Baixa de Lisboa, sem ter noção do perigo, mas que no
Kosovo cresceu muito como mulher e jornalista e é actualmente minha grande
amiga. Temi também pela vida do Pedro Escroto, o operador de câmara que acompanhava
a Alexandra nas reportagens, um excelente homem e profissional competente. No fundo
tentávamos todos desempenhar o melhor possível as nossas funções e existia
entre nós outra identidade comum: a de sermos portugueses.
Estas missões que desempenhou foram
sempre em regime de voluntariado?
Todas
as minhas missões foram feitas em voluntariado. A AMI apenas dava algum
dinheiro para a alimentação. Mas, em Angola, muitas vezes esse dinheiro
perdeu-se nos bancos e fomos obrigados a trocar sal, que tínhamos de sobra, por
alimentos. Cheguei a chorar de tristeza por nos roubarem e deixarem à mercê da
fome.
Apesar da grave doença que contraiu
nessas missões, do sofrimento que lhe acarreta e que inclusive a obrigou à
reforma, quando recorda o grande trabalho humanitário que desenvolveu nos
países referidos, qual é o seu principal sentimento?
Dou graças a Deus por não ter morrido e por ter podido
ajudar as pessoas. A minha doença não tem qualquer importância, pois podia
tê-la contraído noutro qualquer lugar. Antes eu ter ficado doente que uma mãe
de família com filhos para criar. Já vivi 72 anos e no meio de tudo isto até
fui bafejada pela sorte.
Na Chamusca teve um almoço de homenagem
em 1993, foi eleita personalidade da Chamusca, na área de acção humanitária no
âmbito do Projecto Curricular de Turma do 6.º A, da Escola EB 2,3/S de Chamusca
e em 2012 teve um tributo organizado pela Biblioteca local. A nível nacional
foi-lhe atribuído o Prémio Mulher Activa de 2002. Como é que sentiu estes
tributos, sobretudo a distinção de Mulher do Ano?
Sinto que não fiz nada de mais. Tudo o que recebi foi o dobro do que dei. Não fiz nada à espera de distinções, mas apenas de servir o próximo.
Sinto que não fiz nada de mais. Tudo o que recebi foi o dobro do que dei. Não fiz nada à espera de distinções, mas apenas de servir o próximo.
1993 -Almoço de homenagem no Restaurante Poizo do Besouro, na Chamusca, cantando acompanhada ao acordeão por Vítor Moedas.
1993 - Outra fotografia da homenagem
2012 - Biblioteca da Chamusca, cantando acompanhada pelos excelentes músicos João Chora e Vítor Moedas.
Com a estatueta do Prémio Activa.
O Prémio Mulher Activa 2002 tinha um
valor pecuniário de 35.000 euros, dinheiro que num magnífico gesto de generosidade,
altruísmo e humanismo deu para obras missionárias que trabalhavam com crianças
órfãs e muito carenciadas em Angola. Porque razão o fez?
Logo nos estúdios anunciei que ia dar o dinheiro para
os órfãos de Angola. Aquele dinheiro não era meu, pertencia a todos os pobres
com quem trabalhei. Sem eles o prémio nunca me teria sido atribuído.
O dinheiro chegou a Angola mas também a outros
lugares, como às Filipinas e serviu para ajudar as crianças e as misérias
desses países.
Numa sociedade que cada vez tem menos valores humanos,
seria bom que os próprios responsáveis políticos por esses países tivessem um
gesto igual ao meu.
Recebendo o cheque das mães de Pinto Balsemão, Presidente do Grupo Impresa, e de Maria José Rita mulher do Presidente da República Jorge Sampaio.
Depois de tantas missões além
fronteiras, em 2003 ainda teve uma grande missão no auxílio às pessoas
atingidas pelo fogo que assolou a Chamusca e esteve na primeira linha de
intervenção. Onde é que ainda arranjou forças e como é que se processou a sua
colaboração?
As pessoas merecem-me mais atenção que a minha doença. Por isso fui para a Protecção Civil e com eles organizei e
concentrei esforços para, conjuntamente com os Escuteiros, de cuja Organização
fiz parte durante muitos anos, ajudar as pessoas no terreno. No Pinheiro Grande
andei no meu próprio carro a fazer a evacuação de pessoas e a pé com os escuteiros informando a população que devia ferver folhas de eucalipto para
resolver os problemas respiratórios devidos ao fumo.
Depois chegou a Cáritas para colaborar também.
Apetrechar as casas e reunir esforços. Foi preciso prestar cuidados de saúde
devido à inalação do fumo e à emoção e ansiedade, confortar as pessoas,
sobretudo as que ficaram sem nada e instalá-las na Associação Nova Fronteira,
na Carregueira, que se mostrou disponível para ajudar, e para onde eu,
pessoalmente, levei algumas dessas pessoas.
Houve um grande esforço de todas as pessoas e
Instituições envolvidas e só assim foi possível minimizar os danos.
Actualmente ainda continua a tocar
música e a desenvolver alguma actividade de solidariedade social?
A música hoje está posta um pouco de parte, por razões
de saúde, e já só toco nas missas.
Ainda continuo a dar apoio às pessoas que precisam, no
acompanhamento de idosos, de famílias carenciadas e na compra de medicamentos.
Que mensagem de solidariedade gostaria
de deixar e que conselhos poderá dar a quem queira seguir uma vida de
missionário?
Temos que
começar a nossa missão em casa e com os que mais precisam na nossa Terra, nas
nossas ruas. É preciso saber ouvir, porque cada vez há mais pessoas sós.
Não vale a
pena tanta conversa de solidariedade, sem sermos um exemplo para as nossas
crianças. Temos que fazer as coisas com humildade, sem protagonismo, só assim
se ajudam as pessoas.
Hoje o que mais se vê são pessoas a servir-se dos outros, do
Hoje o que mais se vê são pessoas a servir-se dos outros, do
que a servi-los. Quem não vive para servir não serve para viver.
Eu nasci
pessoa e gostava de morrer pessoa. Mas perante a realidade actual acho que
nasci pessoa e vou morrer máquina.
Outros Comentários e opiniões sobre a personalidade e a obra de Nazaré Santos
Revista Activa - 2002
Texto da sua apresentação como uma das nomeadas ao Prémio Mulher Activa e publicado na revista Activa, edição de Maio de 2003.
Alexandra Borges - Jornalista da TVI
"Passei a admirá-la quando ouvi a paixão com que falava de cada criança a que tinha dado a mão. A Nazaré não é mãe biológica mas sempre foi mãe de coração de muitas crianças do mundo.
Poucas pessoas me influenciaram em tão pouco tempo. A Nazaré conquistou-me."
Dr. Fernando Nobre, Fundador e Presidente da AMI
"A AMI, a Chamusca, Portugal e o Mundo muito devem à Nazaré que sempre soube semear coragem, cuidados e atenção e Amor à sua volta. Paradigma de coragem e do estoicismo nas adversidades, a Nazaré é e será sempre um exemplo.
Ser humano excepcional e por isso mesmo exigente, no cumprimento dos seus deveres e dos outros, profissional competente e delicadíssima, elemento motivador e mobilizador, a nossa querida Nazaré faz muita falta à AMI."
Outros Comentários no facebook
- Pedro Queimado Sabes Carlos, dei-lhe um dia o título de "Anjo de África!". Bem sei que nem sempre é assim que se muda o mundo. Mas mudar vidas como esta senhora mudou, fazer almas esquecidas sobreviver e viver... Ai, que senhora... Que não ouso cumprimentá-la sem vénia. ASSIM MERECE!
- Maria Martins Uma lição de vida. Fiquei sem palavras e profundamente emocionada ao ler esta entrevista. São seres humanos como a D. Nazaré, que fazem do mundo um lugar melhor para viver pois até num cenário de guerra e de verdadeiro horror conseguem fazer o sol brilhar levar esperança e dar muito amor. Obrigado Carlos por nos dares a conhecer a vida deste Anjo.
Eduardo Martinho deixou um novo comentário na sua mensagem "NAZARÉ SANTOS, UM CORAÇÃO SEM FRONTEIRAS":
Emocionante testemunho!
Obrigado Nazaré.
Abraço amigo,
Eduardo João
Emocionante testemunho!
Obrigado Nazaré.
Abraço amigo,
Eduardo João
- Rui Miguel Martinho O mínimo que devo fazer é partilhar. E com muito gosto. Obrigado Carlos, abraço
Lindo! Uma lição de vida. Se existissem mais pessoas assim o mundo seria um lugar melhor. Esta GRANDE SENHORA é a prova viva de que existem anjos na terra.
ResponderEliminarEmocionante testemunho!
ResponderEliminarObrigado Nazaré.
Abraço amigo,
Eduardo João
Grande Senhora
ResponderEliminarHabituei-me a admirá-la desde os anos 70 ensinado pelo meu falecido pai que a tratava por "menina Nazaré" e que muitas vezes a ela recorreu para lhe indicar gente carenciada que necessitava do seu auxílio no Chouto. Sempre a "menina Nazaré" respondeu atenta e eficazmente e vem daí todo o meu muito apreço pela sua brilhante e gratificante actividade em favor dos mais necessitados! Depois a sua vida valiosa e útil de amor ao próximo está aí muito bem detalhada e este belíssimo trabalho é um magnífico testemunho! Um obrigado muito sentido e bem grande para a "menina Nazaré"!
ResponderEliminarQue grande mulher
ResponderEliminarQue grande mulher
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